Acompanhando, como já tive ocasião de dizer, a série “Ressurreição”, que teatraliza a saga de Ertrugul, personagem real da formação da Turquia, pude observar três aspectos, entre outros: os conteúdos históricos e a novela, como forma narrativa de tempos heroicos, além da inusitada documentação das relações entretidas com o mundo espiritual.
Sobre o prazer de ler a história, esse terceiro aspecto da série chama muito a atenção, porque está na base e no vértice de todas as ações, fora a violência e as constantes juras de vingança, e a importância da lealdade, da obediência irrestrita e dos laços ampliados de família, na tribo. Estamos, realmente, diante de uma enciclopédia filmada, cabendo-nos apenas o esforço da atenção crítica, a observação além do glamour romanceado dos personagens históricos reunidos cinematograficamente.
Concentremo-nos, entretanto, no que queremos realçar. O Islamismo é uma das religiões monoteístas, ao lado do Cristianismo, advenientes do Judaísmo. A meu ver, há outras religiões monoteístas, o que não vem ao caso agora. Allan Kardec produziu um excelente estudo sobre o Islamismo, inserto na Revue Spirite de 1866. A rápida expansão do Islã foi acompanhada pela divisão interna entre os Xiitas, defensores de uma liderança hereditária dos descendentes de Maomé, o fundador e codificador corâmico, e os Sunitas. A religião tinha e tem por base a fidelidade a Alá em suas constantes inspirações, e seu profeta, admitindo preceitos cristãos e, paradoxalmente, a guerra santa em defesa e na implantação planetária do seu ponto de vista. Teve início, entre outras muito variadas causas, como as faculdades mediúnicas (proféticas) de Maomé, no combate ao politeísmo. Mas, é dessas faculdades extra perceptivas que descende o grupo Sufi, liderado na série pelo árabe-murciano Ibn Al Arabi.
A crença, projetada no combate aos infiéis, para a implementação de uma ordem social justa, permitiu uma rápida expansão de um império, assentado na autoridade religiosa, ungida de poderes temporais. Os povos túrquicos, provenientes migratórios nomadistas da região entre os mares Cáspio e Aral, sem perda de sua autonomia governativa, foram conquistados pelo islã – a religião, e invadiram a Anatólia, constituindo o Império (Sultanato) Seljúcida, ao lado do Império Romano do Oriente (Império Bizantino), com sede em Constantinopla/Nicéia, hoje Istambul, cidade da Turquia, na entrada do Mar Negro (Bósforo). Conforme averbou Allan Kardec, “o Espiritismo, mal compreendido na Antiguidade, foi a fonte do politeísmo” (RS/1859), esse panteão de deuses mitológicos. Kardec usou a expressão “Espiritismo”, como fonte, porquanto ele o compreendia como ciência do Espírito. Possivelmente, nossa referência hoje seria ao mediunismo, porque a palavra espiritismo ganhou outros significados. As religiões monoteístas não abandonaram o concurso da mediunidade (expressão espírita), conforme demonstra a série, nas sessões sufis, presididas pelos Imãs e dervixes, sucedâneas dos cultos politeístas mongóis de consultas a espíritos. O diálogo constante com os “mortos” e suas aparições concretas ou em sonhos são uma constante.
Entretanto, parece-me útil reflexionarmos sobre uma atitude constante nesses filmes que evocam o passado da humanidade em progresso, ou seja, a pertinente ao conceito de justiça. Não estou me referindo à “justiça social”, tão discutida em nossos dias, e que tem vislumbre no comportamento de Ertugrul, quando distribuía os bens do Beilhique (Estado), que fariam a sua riqueza pessoal, naquele tempo legítima, com os menos afortunados., a quem visitava para consolar e incentivar. Além disso, os turcos islamitas daquele tempo a que se reportam os filmes da série reconheciam o direito de todos à sua fé e à prática dos ritos religiosos. Refiro-me à assimilação da vingança ao conceito de justiça, servindo-me da frase de José da Silva de Jesus: “Os Espíritos mais atrasados de nossa sociedade se associam facilmente com ideologias punitivas…” (in RIE 342/agosto/2021). “Olho por olho…” não foi uma isolada assertiva bíblica, para configurar a justiça de Javé, mal compreendida na irracionalidade das emoções humanas. A vingança constituiu a base da justiça entre os povos e os indivíduos, permeando as mentes naufragadas no interesse pessoal (Q 895LE). A vingança ainda aprisiona as relações, tendo adquirido requintes de hipocrisia, mal disfarçada na “sabedoria” do “Poderoso Chefão” (filme): “Nunca odeie seus inimigos! Isso afeta seu discernimento.”
Por isso mesmo, entre as chamadas “leis morais”, assim designadas e propostas por Allan Kardec aos espíritos, não há a lei de justiça, o que evita a desinteligência forçada atavicamente pela história natural. O conceito, para ser bem compreendido na sua dimensão espiritualizada, mereceu um elastério, tratando-se, agora, da lei de justiça, amor e caridade.
Mário Lange de S. Thiago