A Lei nº 5.063, de 4 de julho de 1966, instituiu o Dia da Caridade. É certo que a lei não torna a caridade obrigatória, nem mesmo a sua comemoração neste dia. Então, o que terá levado o legislador a tal indicação normativa, que não encerra norma alguma? Como nas outras comemorações, do mesmo modo apontadas em normas jurídicas, proclama uma questão moral, subsumida no conceito de caridade, dando-lhe significação convivencial que é, em última análise, o objeto do Direito. Trata-se de um artifício, do ponto de vista jurídico, com vistas à reflexão.
A caridade é um conceito cristão, mas nem por isso necessariamente repudiado por outras religiões. Paulo, na 1ª Epístola aos Coríntios, ressoando a parábola do Bom Samaritano, fala-nos da caridade, considerando-a como a virtude mais excelente, mesmo em face da fé e da esperança (“A maior delas, porém, é a caridade” (I Coríntios, 13:13), conforme a tradução da Bíblia de Jerusalém). Entre os espíritas, que construíram ao lado das teologias tradicionais um modelo teórico, dando a dimensão espiritual aos ensinos do Cristo, a caridade vem pontuada na máxima: “Fora da caridade não há salvação”, Ainda marcada pela palavra “salvação”, a expressão indica, em realidade, a ideia de evolução, ou seja, a de transformação moral do Espírito.

Mas, o que vem a ser caridade e por que se dá a ela tanta significação centralizando todo o modelo cristão? Recorde-se a Questão 886, de O Livro dos Espíritos: “Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas”. As referências são a atitudes, expressões de uma tendência moral irredutível, que se converterão nas mais diferentes ações. Dir-se-á que a caridade é o amor em movimento, expressando-se subjetivamente. Logo, sem amor não há verdadeiramente caridade. Assim, tanto quanto não se confunde com o amor, a hipóstase da qual somos feitos, a caridade não é o bem. Na questão 897, de O Livro dos Espíritos, ficou a assertiva de que “é preciso fazer o bem por caridade, isto é, com desinteresse”. Talvez, na língua portuguesa, a palavra que mais se aproxime, para efeitos de sinonímia, sempre imperfeita, seja disponibilidade. Estar disponível, pronto a servir e a se oferecer ao serviço do outro, a compreendê-lo. Portanto, a caridade antecede à ação, definindo-se nesse espaço entre o amor, que é disposição íntima constante, e o bem que se deseja, a seu turno sujeito a regras objetivas, como na assistência social. Veja-se a expressão de Paulo: “Ainda que distribuísse todos os meus bens aos famintos, […] se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria” (I Coríntios, 13:3). E aqui não se está falando de amor a alguma coisa excelente ou, mesmo, a alguém com merecimentos estéticos, existenciais, ou ainda, a fragilidades. Mas, de amor simplesmente, como prefere Madre Tereza de Calcutá, ou seja, de um patrimônio espiritual imperturbável e inextinguível, que permite abeberar o sentido da vida. Portanto, no processo espiritual evolutivo, o que nos edifica e nos posiciona vibratoriamente nas dimensões da Espiritualidade não é a obra ou serviço em si (a que se dá valor pedagógico e social, entretanto), mas a mudança interior ou a renovação mental, que nos leva à compreensão do poema franciscano: “É dando que se recebe”.

Então, sugere-se a caridade como preparação e solução para a vida espiritual, interior, ante ou post mortem. Naturalmente, há de ser assim, pela superação do egocentrismo, necessário apenas para a formação da identidade, não se permitindo a sua corrupção em egoísmo. Em linguagem hermética e paradoxal, diria que o dado subjetivo é mais objetivo que o dado objetivo, isto é, o que está na intimidade das pessoas é que as define como caridosas, posto que a aparência, por si só, sustente a hipocrisia.
Em consequência, tratar do assunto caridade é tarefa da maior importância na construção de um projeto evolutivo pessoal, que é um projeto de iniciação em si mesmo, de autoconhecimento. Nesse comenos, ter-se-á em conta o universo constituído pelas coisas em geral, que são suscetíveis de apropriação, e as relações interpessoais, estas agregadas à noção de alteridade. A primeira impressão é muito significativa, decorrendo do choque vibratório. Dele resulta, ou a simpatia, ou a antipatia, quando não, a apatia. Neste último caso, a indiferença, onde reside possivelmente o pior sentir, que é o não sentir, o não perceber. Nos dois outros casos, da simpatia e da antipatia, algo se processa interiormente, não permitindo se dar às costas. E uma avalanche de forças interiores, guardadas na emoção ou no sentimento, frutos da experiência, desdobra-se em movimentos de exteriorização do self. Jesus propôs o amor ao próximo, justamente, porque é em face deste que se avaliam as vibrações interiores, nisto se consubstanciando o conhecimento de si mesmo. É, em verdade, um agradecimento ao próximo, porque o adversário está dentro. O bom samaritano, da parábola, é que foi chamado na exemplificação, por renunciar a si próprio, às suas comodidades no percurso, para ocupar-se com o outro. Nem é somente pelas razões preconceituosas dos judeus em relação aos nascidos na Samaria, mas Jesus a eles se refere, porque o vocábulo samaritano, em língua hebraica, quer dizer vigilante.
Sempre é possível, pois, desenvolver a caridade, pela impregnação moral ou psicológica, se nos mantivermos despertos, com a atenção voltada para o sucesso altruístico nas relações. Após a primeira impressão, segue-se a construção do entendimento, onde tem lugar a empatia. Colocar-se no lugar do outro, apreciar-lhe as dificuldades, os desvios, sempre na perspectiva da real compreensão que se pode emprestar. Os esforços caritativos não comportam apenas as atitudes exteriores, que são o bem a realizar, mas consistem na análise afetiva das necessidades e das providências. O automatismo disponibilizado não serve à caridade, antes revelando, quem sabe, culpas ocultas na intimidade do ser, ávido em superar a depressão.
Em última análise, a caridade não se confunde com a esmola, nem com a filantropia, como se pensa vulgarmente. Ela não está representada nas ações exteriores, mas unicamente na maneira como são realizadas. O importante é a generosidade empregada para a satisfação de quem recebe, sem aviltamento ou humilhação. Pela caridade não se transformam apenas as situações, mas os seres.
O uso da palavra caridade, afetado a obras, permitiu o seu emprego com dúplice sentido, material ou moral, tornando imprescindível distinguir, na esteira de Kardec, a caridade benevolente da caridade beneficente. Nas palavras do Codificador “se a beneficência é necessariamente limitada, nada além da vontade poderia estabelecer limites à benevolência”. Entreguemo-nos à caridade como valor subjetivo, essencial à evolução do Espírito, já que, como define Paulo: “A caridade é paciente; a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (I Coríntios, 13:4-7).
Mário Lange de S. Thiago
(Artigo originalmente publicado no Reformador, para aqui trazido com alguns acréscimos do autor)