Mário Lange de S. Thiago
“O Espiritismo tem por fim demonstrar e estudar a manifestação dos Espíritos, suas
faculdades, sua situação feliz ou infeliz, seu futuro; em suma o conhecimento do
Mundo Espiritual” (Allan Kardec, in O Que é o Espiritismo, item 20, Cap II).
A primeira edição de O Livro dos Espíritos é de 1857, com uma Introdução, 501 questões numeradas, mais o Epílogo. Já a segunda edição, de 1860, conforme anotou Allan Kardec, em Aviso introdutório, é uma reimpressão que pode ser considerada obra nova, contando com a Introdução, 1019 questões numeradas e uma Conclusão. Em 1858, Kardec publicou uma Instrução Prática Sobre as Manifestações Espíritas, edição preliminar ao O Livro dos Médiuns ou Guia dos Médiuns e dos Evocadores, de 1861. Em 1859, publicou O que é o Espiritismo. Tendo editado a Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo somente em 1864, a sua terceira edição definitiva em 1865, completamente refundida, tomou novo título: O Evangelho Segundo o Espiritismo. Assim, O que é o Espiritismo, em nova edição, em julho de 1865, passou de 100 para 200 páginas. Também em 1865, veio a lume O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo. Em 1868, Allan Kardec publicou A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo.
O acompanhamento dessa sequência de publicações revela bem o significado da palavra “espiritismo”, um neologismo kardeciano. Tratou-se de designar com ela o estudo das relações dos espíritos – enquanto entidades identificáveis, conosco, enquanto pessoas (espíritos reencarnados), através dos médiuns. Com esta base, também se deu curso ao estudo sobre a origem, a natureza e o destino dos Espíritos, com fundamento em suas próprias revelações. Logo, o Espiritismo é uma ciência da mediunidade e dos Espíritos, um novo campo do conhecimento humano, a partir de evidências observadas experimentalmente e de explicações autênticas, por se tratar de fenômenos inteligentes, abrindo, embora, um portal para a recompreensão filosófica e religiosa do universo, da vida e da cultura.
O Livro dos Espíritos, entretanto, antecede ao O Livro dos Médiuns. Naquele, a palavra “espiritismo” já conjuga à teoria da mediunidade, ainda não explicitada, a filosofia espírita, assim designada porque decorre das ideias contidas nas respostas que os Espíritos deram sobre diversas questões relacionadas à existência humana, na perspectiva da imortalidade da alma. Com o O Livro dos Médiuns (1861) firma-se uma metodologia que permite fazer a diferença entre mediunismo e mediunidade, conceito este em que se incorpora ao fenômeno objetivo um ingrediente de subjetividade ou de moral.
O Evangelho, assim considerados os ensinamentos da moral espiritualista de Jesus de Nazaré escritos pelos chamados apóstolos, tem já perto de 2000 anos. Desse modo, tem sido lido e interpretado conforme os paradigmas epistemológicos vigentes. O surgimento do Espiritismo assegurou a revisão do conhecimento para conceituar o espiritualismo, emprestando-lhe a condição de espiritualidade concreta: a antiga fé passa a poder enfrentar a razão face à face, forçando o ocaso do materialismo vigorante. Paradoxalmente, a sociedade ocidental tem sido dogmática e religiosamente envolvida pelo cristianismo, malgrado a predominância do pensamento pós-iluminista, que enevoou a metafísica, e fundou o materialismo como visão de mundo. Daí que veio a ser necessário retomar os ensinos do Cristo, apontado pelos Espíritos como guia e modelo, para apreciá-los à luz do novo conhecimento, adquirido conforme os postulados metodológicos de uma ciência que considera o transcendente, indene de paixões humanas, contrapondo-os racional e empiricamente. Por isso é que, apenas em 1865, surgem as novas e definitivas edições de O Evangelho Segundo o Espiritismo e de O que é o Espiritismo. O primeiro (seguido no mesmo ano por O Céu e o Inferno e, em 1868, por A Gênese), para reposicionar a instituição cristã em bases morais livres e progressivas, sem regras e prescrições dogmáticas, consagradoras do dever consciencial, e o segundo para explicitar a sua compreensão dialógica. Então, surge a questão de como apresentar ao neófito toda essa enciclopédia, considerando a diversidade cultural das pessoas e das sociedades. Em nosso meio, com a agravante de preconceitos disseminados quanto ao fenômeno, alojados na ignorância, em práticas exóticas, na charlatanice, na mais diversificada terapêutica alternativa, na adivinhação supersticiosa e na explicação excludente das ciências materialistas, essa exposição impõe a pedagogia da simplicidade.
Entendemos que as pessoas vêm ao Centro Espírita em processo de busca, sem falar daqueles que herdam familiarmente a situação de espírita. São diversas as suas motivações, mas podemos considerar duas categorias: a solução de situações de sofrimento e a aquisição de conhecimento. Apesar da especificidade motivacional, não se pode fugir das características de cada um desses encontros. No primeiro, o gesto fala mais alto. As ações de acolhimento deverão pautar um convívio forçado, de certa maneira, cheio de expectativas focadas. Nosso interesse está na segunda categoria, em que voluntariamente se procura o meio espírita. Novamente, precisamos enfrentar as múltiplas maneiras como isso pode se dar. Pode ser pelo salão aberto das palestras, pelo contato com alguém do Centro, uma conversa privada, até mesmo, um grupo aberto de estudos. É nesse episódio que nós mesmos começamos a ser testados, porque não podemos iniciar alguém a partir do estágio em que estamos, quando as questões básicas já foram ultrapassadas. Então, recordemos o que determinou o nascimento do Espiritismo. Como todos sabem, foi a comunicação com os Espíritos. Esse é o começo, que deverá ser apresentado ao iniciante, não mais pelas experiências difíceis, mas na forma elaborada em que se encontra. A leitura pausada da Revue Spirite dá a dimensão histórica dessa elaboração, desde 1858 até 1869.
Com a Codificação estabeleceu-se um marco separando o mediunismo, forma espontânea, da mediunidade, reconhecida como fenômeno natural, mas que deve ser praticada a partir de controles exercidos pelo médium, em relação com a multidão dos caráteres dos comunicantes. Trata-se, portanto, de uma exposição de relativa complexidade, através da qual se formarão três conceitos: o da imortalidade, o da reencarnação e o da caridade. Esse proêmio é imprescindível, para que o iniciante entenda que um novo universo está sendo apresentado, radicalmente diverso das visões do materialismo reducionista ou das crenças e crendices, dominantes. Importa em verdadeira disrupção paradigmática, isto é, consciente, mental, por isso que, os acontecimentos externos da vida continuam os mesmos, porém vistos a partir de uma nova compreensão. Em consequência, a atitude esperada do estudante espírita é a da perquirição filosófica, levando em conta os conceitos atribuídos aos Espíritos, sobretudo os que foram postos nos textos assinados por Allan Kardec.
A formação de uma opinião é necessária, em muitas questões pessoais, pareceres provisórios e progressivos, na busca de uma conformação ao capítulo sobre a perfeição moral. Mas, o contrário também é de se esperar, sem que deva ser incentivado. É que, para muitos, as respostas não conseguem a radicalidade epistemológica, preferindo guardar religiosamente o entendimento dos Espíritos. São posicionamentos íntimos, quase sempre incontroláveis, fruto de tendências adquiridas, entre a aventura e a segurança racionais. Na verdade, essa progressividade dos estudos e da compreensão ocorrem simultaneamente ao processo de formação do novo conhecimento. Sobretudo, neste caso, a sua expansão. O Livro dos Espíritos dobrou o número de questões da primeira para a segunda edição, com significativas diferenças. Até a designação “espiritista” da segunda edição, na primeira edição estava “espiritano”, conforme a tradução de Canuto de Abreu. O segundo livro publicado por Allan Kardec foi uma Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas, em 1858, seguido da primeira versão de O que é o Espiritismo, em 1859. Os estudos sobre o Evangelho só vieram a partir de 1864. Assim, é forçoso convir em que, dada a notícia geral do aparecimento do Espiritismo, era urgente firmar a convicção de que os Espíritos estão aí, na natureza, invisíveis aos olhos dos sentidos, mas atuantes, passando-nos informações decisivas para o despertamento de nossa consciência, nas dimensões gnosiológica e axiológica. Os comentários de Allan Kardec aos Evangelhos servem como confirmação destes, cujas averbações já estavam disseminadas na sociedade, dando-lhes a luz do Espiritismo, constituído como uma ciência da natureza espiritual, ao lado da natureza material. Por isso mesmo, é que são totalmente indevidas as adjetivações de cristão, progressista e laico, que se costuma utilizar. Nesses casos, não se está estudando o Espiritismo, mas também um dado aspecto da convivência social e cultural, a partir da imortalidade, da reencarnação e da caridade, em plano interexistencial.
Estudar o Espiritismo não é, pois, e apenas, o consequente e necessário estudo aplicado do Evangelho reinterpretado, ou das obras psicografadas de Chico ou Divaldo, ou dos grandes pensadores da humanidade, mas é conscientizar-se de como ele próprio conspicuamente se viabiliza e o que nos ajuda a descobrir, abrindo-nos um campo novo de observação e experimentação. Descobrindo a caridade como potência psíquica despertada como atitude, face ao processo das múltiplas ações e relações humanas, portanto, como valor subjetivo, a despeito da sua objetividade espiritual, Kardec intentou seus estudos dando consistência ao aprendizado moral consciente, na perspectiva da vida, após a morte ou aqui mesmo. Por isso, não há como ser estudante e adepto do Espiritismo sem que se opere esforços para a própria transformação moral, o que implica em transformações no modo de pensar, agir e sentir, ou seja, no modo de ser. É preciso ir descalibrando nossas vibrações sensoriais e emocionais quanto a interesses nas coisas e nas relações, e nas necessidades pessoais, para ingressar no verdadeiro estudo do Espiritismo.